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COVID-19 e a sobrevivência nas 24 favelas em torno do Jardim Miriam

COVID-19 e a sobrevivência nas 24 favelas em torno do Jardim Miriam

A Zona Sul já esteve entre os sete dos dez distritos com mais mortes em SP devido a COVID-19, segundo mapa divulgado pela Secretaria Municipal de Saúde, a Cidade Ademar já liderou entre os bairros na Zona Sul com número de mais de 200 mortes.

Nossa quebrada é habitada por mais de 300 mil pessoas, das quais mais de 50 mil vivem em favelas. O bairro mais influente do distrito de Cidade Ademar, é o Jardim Míriam, com cerca de 100 mil habitantes onde 20 mil deles são moradores de mais de 24 em favelas em torno do Jardim Miriam. A situação dos moradores após a pandemia da COVID-19 foi escancarada, é só pegar o mapa da pobreza e colocar em cima, a Zona Sul de São Paulo é a que mais apresenta falta de estrutura estatal, o descaso por parte da sociedade civil é gritante, são moradores que nos procuram sem recurso básico de sobrevivência, e sem condições mínimas de higienização para suportar a situação de uma quarentena minimamente possível, não tem água nas casas para lavar as mãos, existe uma real necessidade de ações específicas para combater a doença nas quebradas.

Desde início da quarentena as pessoas não estão olhando com seriedade para doença, e muitas delas não tem sequer condições de colaborar com as medidas para se combater a pandemia, por isso a implantação do Projeto de Agentes de Saúde tem sido essencial para que as famílias possam ter condições sociais mínimas de um isolamento, e isso foi possível porque olhamos o isolamento social dentro das periferias como medida de saúde pública.

O ato de cuidar dos seus iguais desde fornecimento diário de marmitex para os moradores em situação de rua à aferição da temperatura, tem sido importante para salvar vidas, esses moradores poderiam ter morrido de fome, ter contraído o vírus e sequer saber, não existe um setor de acolhimento para essas pessoas no bairro, quem vai medir a temperatura de uma pessoa em situação de rua? O projeto forneceu o termômetro em modelo digital para que a gente conseguisse pelo menos saber se eles estão febre.

“Macarrão”, um dos homens mais conhecidos em situação de rua e antigo do bairro, desde início da pandemia retira marmitex, e vive sozinho sem familiares, passou mal na fila da distribuição de alimentação que acontece na sede do Pagode Na Disciplina, no Jardim Miriam e nós medimos a saturação e febre, ele foi direcionado para o hospital com início de infarto, ele podia ter chego à óbito aqui, na fila e na nossa frente. Leticia, Agente Popular de Saúde do bairro já atendeu cerca de 50 de pessoas  entre pessoas com suspeita e casos confirmados de COVID-19.

Aqui no nosso núcleo atendemos um total de 600 famílias, são famílias que foram cadastradas desde início da pandemia, para assistência em todos pilares que envolvem a doença, entregas de cestas básicas, fraldas, leite, produtos de higiene e até medicamentos. O Jardim Miriam apresenta um número significativo de favelas e as pessoas em situação de rua e pessoas em situação de extrema pobreza tem crescido absurdamente, um bairro cercado por favelas e autoconstruções onde moradores disputam espaço nas calçadas e porta dos locais pedindo comida para sobreviver.

O projeto Agentes Populares de Saúde dentro da nossa comunidade pode salvar vidas, vidas de pessoas que foram paralisadas, trabalho interrompido e sem condições de manter seus familiares com dignidade. Quando penso na relevância do projeto e entre tantas histórias me lembro de Elaine, uma das muitas mães atendidas no núcleo, relata que recebeu auxílio emergencial do governo e diz que a única preocupação dela no contexto de desemprego dela e do seu companheiro era pagar o aluguel e mistura, porque com a cesta básica fornecida pela Uneafro, leite e fralda para a filhinha de 2 anos tem sido uma alívio nas despesas dela.

O Núcleo Pagode Na Disciplina está a 212 dias ininterruptos entregando marmitex aos moradores de rua e pessoas em situação de extrema vulnerabilidade no Jardim Miriam, cerca de 18 mil marmitex até o momento. 

Leticia dos Santos. 32 anos, moradora da região do Jardim Miriam Z/S São Paulo. Estudante de Relações internacionais, pela Universidade Estácio de Sá.  Ativista no projeto de roda de samba Pagode na Disciplina e Agente Popular de Saúde pela Uneafro Brasil.

Luana Vieira. Mãe, nascida e criada na zona sul de São Paulo. Militante, graduada em recursos humanos e graduanda em Direito pela EPD – Escola Paulista de Direito. Gestora executiva do projeto sócio-cultural Comunidade Pagode Na Disciplina Jardim Miriam, e em 2019 foi diretora do documentário “Na Disciplina, samba e cidadania”. No mesmo território, Jd. Miriam, é idealizadora da primeira Biblioteca Comunitária com temáticas raciais. Coordenadora da Uneafro Brasil, articuladora geral na Coalizão Negra por Direitos. Atua no Fórum de Cultura Cidade Ademar, na zona Sul e no Fórum de Cultura das Comunidades de Rodas de Samba e Terreiro do Estado de São Paulo. Membra Estagiária CIR – Comissão Igualdade Racial -SP. Co-autora do Livro “Inovação Ancestral de Mulheres Negras” , lançado em 2018 pela Editora Oralituras, organizado por Bianca Santana . Atualmente, levantando discussões e temas voltados à falta de representatividade mulheres negras em espaços culturais periféricos, sobretudo em rodas de samba.

Tecnologias a favor da periferia durante a pandemia

Tecnologias a favor da periferia durante a pandemia

Na mesma semana do dia Internacional dos Agentes de Saúde colocamos na rua a primeira versão do sistema de acompanhamento dos casos suspeitos com COVID-19, com a perspectiva de desenvolver um sistema que facilite o acompanhamento dos casos, como também auxilie nas tomadas de decisão e dimensão desse combate. 

Uma pandemia de escala global exige a apropriação do máximo de recursos, de formas de ganhar informações para entender a doença e seus lastros comportamentais, assim como o Sistema de Saúde está lhe dando com o tema. Não por menos escolhemos o nome Seacole para o sistema que hospeda todas as informações das pessoas atendidas pelo projeto, em homenagem a Mary Seacole, uma enfermeira jamaicana considerada precursora da enfermagem moderna e de nível internacional que ganhou destaque pela sua dedicação no decurso da Guerra da Crimeia.

Para a construção de sistema interno, adotamos o caminho de desenvolver nossa própria ferramenta para mandar a privacidade de dados que o projeto exige, assim como um framework que tem boas práticas de segurança no Core, foi usado o framework Laravel que é um conjunto de componentes que aumenta a produtividade em conjunto com segurança e estabilidade, tudo que a atuação das Agentes Populares de Saúde precisava para o dia a dia, e com a implementação do sistema Seacole se tornou possível gerenciar a situação de todas as pessoas atendidas pelo projeto associando-as aos médicos, médicas e as agentes responsáveis de cada território. Dentro do sistema foi incluso o recurso de prontuário que é preenchido diariamente pelas Agentes Populares de Saúde, sendo assim, possível a visualização das evoluções dos casos, dia a dia. Com alertas conforme o agravamento dos casos para novos direcionamentos seguindo as orientações médicas. 

No desenvolvimento o time se compôs com Rafael Bantu como gerente de projeto e Alexandre Tucunduva e Sócrates Duarte como desenvolvedores. As especificações vieram principalmente por parte da Vanessa Nascimento, Bianca Santana, Bruna Silveira, Débora Dias e o conjunto das agentes de saúde.

Para a construção do site decidimos usar o bom e velho WordPress, com tema Divi e um conjunto de plugins, adotamos o caminho de desenvolver nossa própria ferramenta para mandar a privacidade de dados que o projeto exige, assim como um framework que tem boas práticas de segurança no Core do projeto.  Usamos os mesmos elementos gráficos utilizados das cartilhas, com os créditos para a designer Flávia Lopes, os textos ficaram sob a responsabilidade da Mariana Belmont e Patrícia Firmino. 

Por outro lado, desenvolver um software próprio, por mais que seja um caminho um tanto mais logo, nos colocam no universo de fazedores de tecnologias, e não somente consumidores, e de forma, no aprendizado contínuo desde a especificação de funcionalidades a medidas de segurança, nos apropriamos e elaboramos na descolonização da dependência tecnológica.

Rafael Bantu, há 15 anos atuando nas áreas de Tecnologia da Informação e Comunicação. Com experiência em customização de aplicações web, administração de servidores e atuou na implementação e no desenvolvimento de Projetos e Políticas de Inclusão e Cultura Digital. Atualmente integra a equipe de tecnologia e comunicação da Uneafro Brasil, Gerente de TI na startup Diaspora.Black e pesquisador no Programa WASH – STEAM.

Guarulhos cria sua rede de apoio para auxiliar na travessia da COVID-19

Guarulhos cria sua rede de apoio para auxiliar na travessia da COVID-19

Guarulhos, São Paulo

Em Guarulhos – SP o projeto Agentes Populares de Saúde atua no Núcleo Mabel Assis e a minha experiência como agente popular de saúde está sendo enriquecedora, saber qual a necessidade de uma pessoa e ter recursos em mãos para articular essa ajuda é algo mágico. São muitos casos onde as pessoas tem pouco ou nenhum recurso para se cuidar e manter sobretudo nesse período de pandemia, por exemplo, tivemos um caso com a Dona Ivoneide, ela tem problemas respiratórios e necessita de oxigênio de uso contínuo por não saber como está a saturação do sangue, entregamos a ela um aparelho oximetro, que é um dos procedimentos que o projeto nos fornece para que possamos dar esse tipo de suporte, a partir daquele momento ela pode conferir pontualmente sua saturação e deixou de usar frequentemente o oxigênio, demos à ela os artifícios para o autocuidado, tornando-a não mais refém mas independente do uso de oxigênio frequente, então somente estando com a saturação baixa ela fazia o uso do balão, isso mudou bastante a rotina dela, ela se sentia presa e a emancipação através da informação e também do suporte do oximetro mudou o seu dia-a-dia, naquele momento senti que acima de tudo, ter esse recurso e poder levar à alguém essa atenção é muito gratificante.

Guarulhos teve 8% da totalidade de casos atendidos pelo projeto, acompanhar a evolução de uma pessoa que estava triste contaminada pelo coronavírus e que passou por esse período difícil dividindo essa tristeza também me faz acreditar que juntos amando mais nossos vizinhos podemos ter uma convivência melhor em todo lugar.

 

 

Murillo Almeida Agente popular de saúde Uneafro Mabel Assis

A luta contra a desinformação e as negligências que afetam a periferia

A luta contra a desinformação e as negligências que afetam a periferia

As primeiras pessoas que chegaram com sintomas de Covid-19, em março deste ano, tinham entre eles alguns pontos em comum. Os principais eram uma doença que poucos conheciam e o desamparo que vinha com ela – ainda não mudou tanto. Ter Covid-19 significa passar de 10 a 15 dias da sua vida imaginando se você será um dos que tem sorte e fica muito bem, sem complicações da doença, ou se você será um dos que vai passar pelo piores momentos da sua vida, sem saber se chegou ao fim dela. Aos poucos fomos descobrindo o que faz diferença. É preciso nos antecipar ao pior momento, monitorar os sintomas, porque assim podemos agir de modo a proteger a reserva de órgãos vitais como pulmão e coração. 

É preciso reconhecer quando uma pessoa com sintomas pode piorar, porque isso acontece muito rápido. E é fundamental acolher, porque ela está só – é preciso ficar só e proteger quem está perto. Algumas das funções do projeto foram essas. Uma equipe montada antecipar os problemas e agir para evitar as complicações. Somos também as parceiras e os parceiros que ouvem todo dia como estão indo as coisas do corpo e do que mais a pessoa atendida quiser falar. A ideia inicial era tentar, no meio da confusão que se armou ao longo desse ano, oferecer  uma base de apoio a quem poderia não ter suporte algum. . E o que aconteceu?

Diariamente, nossas colegas, agentes populares de saúde, ligam para as pessoas que nos são indicadas por estarem com sintoma de COVID-19 e precisando de apoio. Já nesse momento descobrimos o tamanho da dificuldade que nos espera. De todas as pessoas que acompanhamos, uma parcela pequena teve um exame de confirmação da doença realizado. A maior parte de quem acompanhamos não teve acesso ao teste que permitiria confirmar o diagnóstico. Portanto, acompanhamos pessoas com  febre, tosse, perda de olfato e paladar, diarreia , dificuldade para respirar. Em meio a uma enxurrada de informações diariamente saindo em toda a mídia, a maior parte das pessoas com sintomas, que temeu pela própria saúde e que foi orientada a se afastar de seus familiares, incluindo filhos pequenos, nem sabia o que tinha. 

Apesar da falta do diagnóstico, não faltaram receitas de medicamentos prescritos cujo efeito está entre duvidoso e prejudicial. Uma receita e boa sorte foi o máximo que muitos dos que buscaram auxílio do sistema de saúde receberam. No trabalho de monitoramento e acolhimento de pessoas com sintomas de Covid-19, vimos pessoas com dificuldade para conseguir medicação de uso contínuo para tratamento de doenças crônicas e pessoas com questões de saúde que vinham de muito antes do Covid-19 já sem solução. E, por fim, vivenciamos no dia-a-dia do nosso trabalho, o acompanhamento de pessoas que precisaram de internação hospitalar. O atendimento hospitalar não foi fácil durante a pandemia. Sabemos que muitos trabalharam duro para conseguir prover um atendimento de qualidade, mas também que é preciso melhorar. Em nossa rotina de ligações, algumas vezes tivemos que intervir em casos de pessoas com evidentes sinais de alerta de gravidade que não foram reconhecidos pela equipe de atendimento de urgência. Em mais de uma oportunidade precisamos manter conversas por telefone até com pessoas em atendimento nas urgências dos hospitais, para garantir o encaminhamento correto. 

No último mês, voltamos a ter mais calma. Menos pessoas com sintomas, menos dificuldade para vagas. Esperamos que as coisas sigam melhorando. Mas,  acima de tudo, esperamos que um dia, um trabalho como o nosso não tenha sentido nem espaço, porque todas e todos já terão o melhor atendimento e acolhimento possível. 

Gladys Villas Boas do Prado, médica infectologista, doutora em ciências médicas (epidemiologia) pela USP. Integra a equipe de infectologia do Hospital Sírio Libanês. Foi coordenadora de cuidado de pacientes de alta complexidade por 14 anos, dez deles em home care. Compôs a Comissão de Controle de Infecção Hospitalar do Instituto Central do Hospital das Clínicas da FMUSP de 2008 a 2015.

A linguagem das comunidades e as pedagogias do futuro

A linguagem das comunidades e as pedagogias do futuro

Os cursinhos populares são movimentos políticos e culturais que nascem do acúmulo de saberes provenientes da luta. Autogestores de seus territórios, comunidades e tradições, resgatam, sistematizam e preservam conhecimentos e memórias para a construção de políticas sociais, de dentro para dentro do seu lugar coletivo. São movimentos que educam toda a sociedade e o fazer política. 

O contínuo da ancestralidade só se faz possível pelas múltiplas existências que juntas dão sequência a história do seu povo. Assim nascem os corpos coletivos como a Uneafro Brasil, que desmobiliza resquícios coloniais ainda presentes no imaginário social, ou seja, a forma racista e sexista com que somos programados a vermos o mundo e a convivermos com outras pessoas, para então, resgatar um tipo específico de conhecimento, o conhecimento nascido da luta, aquele que coloca a vida como princípio máximo da coletividade. Fazendo referência a Nilma Lino Gomes em O Movimento Negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação (2018), “a intervenção social, cultural e política dos negros e negras ao longo da história […] não se trata de ações intuitivas, mas de criação, recriação, produção e potência”. 

Através da construção de pedagogias do futuro, – práticas que garante espaços para se criar perspectivas e horizontes – a Uneafro Brasil desenvolveu o projeto Agentes Populares de Saúde, uma rede de autogestão da comunidade e da coletividade, fatores que guiam a vida das famílias e comunidades pretas e periféricas no Brasil. Pensando que o SUS é uma conquista coletiva e de necessidade coletiva, sendo que aproximadamente 80% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) se autodeclara negra, mas a verba pública disponibilizada à saúde não condiz com as necessidades de uma crise sanitária e nem dialoga com as quebradas, não há outro caminho senão sermos gestores da nossa realidade. 

Complexa em estratégias de sobrevivência e incidência política, a Uneafro Brasil extraí das tensões raciais, territoriais e econômicas caminhos para a manutenção do território vivo e de suas comunidades pulsantes. Somos seres articulares de uma nova realidade social e de uma nova experiência do que é público: ruas que caibam nossos corpos, suas tradições e moradas. 

Identificamos as nossas urgências, formulamos agendas de incidência política e alternativas de implementação das nossas ações, tudo pensado coletivamente e organicamente às construções do território. Estando nas ruas, avaliamos como cada ação age de maneira diferente nos olhos de cada pessoa. As políticas nunca se extinguem, só se somam. Dentro dos nossos território, tudo o que formulamos não é sobre a minoria, mas sobre todos. Esses movimentos insurgentes, que vasculham o passado na constante construção de pedagogias do futuro são o que chamamos de movimentos sociais, dos quais partem construções políticas que mudam os rumos da história. O movimento negro e seus cursinhos populares, espalhados pelas quebradas do Brasil, encontram na educação um ponto de partida, de reconhecimento e de comunidade. São esses saberes desassociadas da lógica Ocidental que proporcionam um processo pedagógico de reeducação da população brasileira.

Pensar futuro é tarefa coletiva. Da tríade educação, participação e território, emergem pedagogias e formulações integradas e complexas, como requer a organização das periferias. Reflexo disso são os materiais dos Agentes Populares de Saúde, que dispõe de práticas da medicina ancestral para o corpo e a saúde mental, de vídeos explicativos sobre o funcionamento e implicações do COVID-19 no nosso corpo e na nossa vida e o cuidado com os líderes comunitários – que pouco se fala. 

Indo contra as imposições do Estado sob o território, que fragmenta  indivíduo, bairro, contexto e história, esse projeto de saúde tece uma outra maneira de articulação. Sendo forjado na periferia, colhe uma multiplicidade de fazeres, de saberes e vivências para então pôr em prática o cuidado. Assim, temos pessoas dos próprios espaços olhando e falando com os seus. Sempre houve uma rede entre vizinhos, familiares e amigos, que hoje realizam um papel importante na luta contra o COVID-19. É o que chamamos de comunidade e sua linguagem, ou de política  dos que vão às ruas.

É na rua que os movimentos sociais se materializam. Nunca houveram dúvidas. Hoje, numa crise sanitária, esse espaço constrói novos lugares e se desvincula de outros. Há quem pode se recolher, há quem recorra para manifestar o direito à vida, há quem passa para ir ao trabalho, mas de toda forma é na rua e por ela que damos sequência às pedagogias do futuro. Parafraseando Luiz Antonio Simas, em “Encantamento: sobre política de vida (2020), é “primar por uma política e educação de base comunitária entre todos os seres e ancestrais”. 

A educação é necessidade básica na luta pela vida. Mas não só. Esta não existe quando desvinculada das outras necessidades básicas para qualquer pessoa: alimentação, saúde, rede de apoio e espaço físico para desenvolvimento de suas habilidades. É através desse entendimento que juntos, Os Agentes Populares de Saúde geram políticas para resguardar aquilo que o Estado brasileiro não faz pela população preta e periféricas: nossas comunidades, guardiãs dos conhecimentos do futuro.

Foto/₢apa: Caio Chagas

Transitando pelas narrativas poéticas e acadêmicas, Jéssica Ferreira, 23 anos, é escritora, pesquisadora, estudante de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC e idealizadora do Sarau A Perfeita Queda dos Búzios. Colabora com a comunicação da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos. 

Sobre as reais pretas de quebrada

Sobre as reais pretas de quebrada

“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”
– Angela Davis

Saúdo primeiramente minhas ancestrais que abriram com seu sangue os caminhos para que eu pudesse passar. Saúdo também as minhas mais velhas e as mais novas que resistiram e resistem a violência racista e neoliberal todos dias, nas periferias desse país. Começo com a afirmação de Angela Davis, porque o Projeto Agentes Populares de Saúde e as iniciativas de suprir parte dos danos causados pela pandemia nas favelas de maneira muito objetiva, vem evidenciando o papel crucial das mulheres negras. Sim companheiros, quem organiza, cuida, alimenta, sofre e constrói mecanismos de vida para o povo preto são as “pretas de quebrada”. Uso então esse texto para exprimir a força das mulheres dentro desse movimento. Revertendo a aniquilação de nossos corpos e a invisibilidade de nossa intelectualidade, mostramos no dia a dia como é que se organiza uma comunidade pautada na luta, na cura e no afeto. Criamos nossas próprias tecnologias para dar conta de uma quebrada que estrategicamente é negligenciada pelo poder público, que só aparece em formato de tiro, soco na cara e “sumiço no camburão”. E quando o mundo inteiro se via revestido por uma pandemia de um vírus pouco conhecido, as pretas previram a devastação em seus territórios e mais uma vez se colocaram na linha de frente para proteger e minimizar os danos para o seu povo.

A frase “Nós por nós”, tem verdadeiro sentido, quando Luana Vieira acompanhada da Letícia Santos, de domingo a domingo alimentam as crianças no Jardim Miriam, aquilombando ainda mais a comunidade do Pagode na Disciplina. E em Poá Sandra do Santos, acolhe com doçura e tece redes dando suportes para as cidades vizinhas com formação e acompanhamento. É quando, a Fabíola de Carvalho, que na luta , acabou tendo covid-19, recém recuperada estava firme dizendo “Não mexa no nosso Projeto meninos e meninas de rua” e junto dela Lika, enfrentava jornada dupla de trabalho dando conta da Favela do Montanhão em SBC. Já aqui na Fazenda da Juta, a honra era minha, por aprender o que é fazer o “corre” na quebrada
com a Alessandra Candido. Tem, também as manas, que pouco a aparecem, mas são pilares dessa construção, Vanessa Nascimento, Bianca Santana e Mari Belmont, estão sempre ligadas procurando maneiras de fomentar esses e outros sonhos UNEafro, isso tudo com o suporte de Thais Santos, Dalva Santos, Patrícia Toni e Amanda Porto. Nesse Projeto, contamos ainda com Bruna Silveira, Gladys Prado, Amanda Arlete , Cátia Cipriano, Mayra Ribeiro e Juliana que compartilham seus saberes cuidando de nosso povo.

Faço questão de nomear uma a uma, para que não esquecemos, que a força desse movimento é preta, feminista e favelada. Que há muito mais de nós espalhadas pelos núcleos de base fomentando um projeto político antirracista, antimachista, antiLBTQIA+fóbico, anticapitalista e decolonial. E os aos nossos companheiros homens, unam-se a nós, pois não daremos nenhum passo retrocedendo.
Finalizo expressando minha imensa gratidão por nossas trocas. Poder reconhecer em vocês a “dororidade” que Vilma Piedade, apresenta como a cumplicidade entre mulheres negras, pois existe dores que só nós conseguimos reconhecer, me auxiliam a compreender que o reconhecimento na coletividade é cura. Gosto sempre de afirmar que Deus é uma mulher preta e vocês todos os dias me fazem acreditar nisso.

Fontes:
https://brasil.elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.html
PIEDADE, Vilma. Dororidade. São Paulo: Editora Noz, 2017.
Flora Matos. Preta de Quebrada.Eletrocardiograma,São Paulo, 2017

 

Débora Dias tem 22 anos preta, favelada e sapatão, estudante de Ciências Sociais da UNIFESP, é educadora Popular e articuladora da UNEafro Brasil no Núcleo Ilda Martins (Fazenda da Juta-ZL) e no Projeto Agente Popular de Saúde. É artista e pesquisadora da Coletiva Emana ZL e do Coletivo InCorpo ZN. E Pré-co Candidata do Coletivo QUILOMBO PERIFÉRICO

Periferias de São Paulo fazem seus aquilombamentos

Periferias de São Paulo fazem seus aquilombamentos

As periferias de São Paulo sempre tiveram grandes redes de fortalecimento pela arte, cultura, projetos socioeducativos e de assistência social. Sempre o “nós por nós” foi algo que ajudou no desenvolvimento de cada bairro e de cada pessoa que ali vive, possibilitando acessos que outrora haviam sido negados. Durante a pandemia não foi diferente. A União de Núcleos e Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (UNAS), por exemplo, criou um financiamento coletivo para ajudar famílias durante a pandemia da COVID-19.

Desde o primeiro caso de coronavírus monitorado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020, foram feitas pesquisas sobre solidariedade e, a cada matéria publicada, os dados apontavam o crescimento desse tipo de ação entre os brasileiros. Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNDA), a pandemia fez com que cerca de 13,7 % da população perdesse seus empregos ficando sem nenhuma fonte de renda. A partir do recorte de raça e gênero desses dados é possível entender que pessoas pretas e pobres foram as maiores atingidas por todas as consequências que a pandemia trouxe para a nossa realidade.

Entre as condições mais adversas que afetam a população preta e periférica devido às desigualdades sociais e raciais estão: a falta de saneamento básico, alimentação, condições precárias de trabalho e acesso à saúde. Pensando nisso, a Uneafro Brasil e o Instituto de Referência Negra Peregum criaram o projeto Agentes Populares de Saúde. Aliás, se você chegou até esse texto, já viu alguma movimentação do projeto por aí. Arrisco deixar minha concepção sobre a atuação do projeto aqui, sinto que ele retoma o que eu havia citado no primeiro parágrafo, o espírito de nós por nós. Neste momento 5 territórios periféricos são impactados pelo projeto em São Paulo.

Cada território tem sua singularidade. As vezes sinto que a periferia é tratada como um grande bloco único onde distribuir cesta básica tampa o grande buraco da desigualdade. Mas, na verdade, diversas questões atravessam as periferias e isso ficou latente em mim quando, em uma reunião de comunicação do projeto, foi pensada uma estratégia para um trabalho com carros de som. A ideia era criar uma abordagem intimista para cada região, trazendo a humanização desses corpos, dessas famílias e dessas realidades, indo em contrapartida às notícias que trazem números e trazendo unanimidade para histórias únicas e distintas.

O Projeto Agentes Populares de Saúde tem em sua linha de frente agentes que, além de atuarem nos territórios, também são moradoras e moradores deles. Isso propõe maior proximidade com a comunidade e me faz refletir sobre como o aquilombamento tem um pouco do que sentimos quando viajamos para uma cidade do interior, onde todo mundo se conhece e sabe que você é neta do “Seu Chico” e filho da “Dona Ana”. Isso nos humaniza e mostra como temos um exemplo aplicado, na prática, na história brasileira sobre o aquilombamento. É possível construir uma sociedade mais humana e justa e essa é a reconexão para conseguirmos atravessarmos confiantes as dificuldades da sociedade extremamente desigual que vivemos, ainda mais agora no período de pandemia. É isso que sinto o projeto fazer nas periferias de São Paulo: possibilitar uma comunicação horizontal com os nossos, suprir algumas demandas, sendo elas de saúde, alimentação, ou qualquer outra que caiba dentro das condições dele, somos o nosso próprio suporte, mas não podemos esquecer o que também são nossos direitos.

Amanda Porto, produtora, educomunicadora e jornalista por formação. Fundadora do coletivo, podcast e agência de conteúdo para mulheres negras siriricas.co, por meio do qual estuda, de forma autodidata, sobre sexualidade, saúde e empoderamento. Atua como produtora em projetos socioculturais, além de ser idealizadora do projeto EntreQuebradas, que visa promover o pertencimento e desenvolver o protagonismo de corpos periféricos em todos os espaços da cidade de São Paulo.

Quarentena pra quem pode

Quarentena pra quem pode

Pensar a vida é uma tarefa individual e coletiva, nos dispomos a esse exercício porque há uma necessidade de receber e buscar propósito nas ações humanas. Essa busca pode se basear em diversos fatores, mas em resumo isso acontece por um motivo simples: buscar propósito sempre tem a ver com uma vontade de viver com qualidade de vida.

Então, posso dizer que viver com qualidade de vida significa principalmente realizar pequenas e grandes realizações de propósitos diários individuais e coletivos. E em todas as comunidades humanas o trabalho é fundamental como força de transformação do ambiente em que se vive e de circulação humana.

Em meio à pandemia da COVID-19, que começou no final de 2019 na cidade Wuhan, na China, e se espalhou pelo mundo, trouxe justamente os questionamentos sobre como as desigualdades socioeconômicas iriam produzir um cenário de catástrofe na saúde da população de diversos países. Isso significaria paralisação de setores importantes da economia de cada país. Em outras palavras, a força mais fundamental de circulação humana na realização da vida em sociedade para cumprir propósitos diários individuais e coletivos entraria em colapso: o trabalho.

Diante do cenário devastador com mais de 100 mil mortes registradas por COVID-19 no Brasil, mais de 800 mil no mundo, há um preço a se pagar ao se viver na pobreza. Essa soma de crise de saúde e econômica, coloca em questão os valores morais que uma sociedade extremamente hierarquizada e violenta está disposta a pagar ao manter decisões econômicas que privilegiam o propósito de qualidade de vida de pequenos grupos e indivíduos.

O Brasil vive uma longa novela de crise política nas instituições que representam a sociedade civil através do Estado “democrático de direito”. Essa crise tem raízes na estrutura de distribuição das desigualdades sociais.Ora, digo isso, porque segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 2019, apontava que o aumento do desemprego cresceu principalmente entre pretos (16%) e pardos (14,5%) e que brancos (10,2%) ficaram abaixo da média nacional de 12%.

Há também como reflexo a crescente taxa de informalidade como resposta à sobrevivência em todo país, como aponta a reportagem da Folha de S. Paulo a Informalidade supera 50% em 11 estados do país, segundo o IBGE . Enquanto o ricos ficaram mais ricos.

Pessoas negras jovens e idosas apostam em todo tipo de trabalho para poder comer, o que se torna consequentemente seu único propósito diário. Um paradoxo violento, em meio à pandemia, porque não há possibilidade de viver com qualidade em subempregos e sem garantias de direitos trabalhistas.

Arquivo próprio de imagens/ Entrega de cartilhas sobre prevenção ao contágio de COVID-19 em feira de rua, agente popular de saúde conversa com idosa sem máscara, Cidade Kemel-SP (07/2020)

A maioria da pessoas atendidas pelo projeto de saúde estão desempregadas e fazem “bicos” para compor algum tipo de renda. Marta Urania (65), uma das mulheres idosas atendidas pelo projeto, mora entre uma igreja e o córrego onde passa esgoto e onde é descartado muito lixo. A casa de “Dona Marta”, como é conhecida, é de palafita e chão de terra batido, como às outras casa ao lado da dela, não tem água encanada nem acesso a eletricidade.

Ela está desempregada e recolhe material reciclável para vender quando pode, mesmo morando sozinha e vivendo com pouco, sempre cozinha e divide os alimentos e máscaras que recebeu da cesta básica da UNEafro Brasil com os outros moradores, e pela primeira vez em dois anos morando no bairro Cidade Kemel têm sua saúde monitorada. Sem conta no banco e celular ou outro aparelho eletrônico, não solicitou às primeiras parcelas do Auxílio Emergencial.

Ela apresentou sintomas de covid no inicio do mês de julho (tosse, febre e falta de ar), alguns dias antes de pegar pela primeira uma cesta básica e acessar o projeto de Agentes Populares de saúde. Apesar de melhorar, ela não realizou nenhum teste, sem saber se teve covid, dificilmente poderia evitar a contaminação. A Cidade Kemel, bairro de periferia que está na divisa entre Poá, São Paulo, Ferraz de Vasconcelos e Itaquaquecetuba, concentra problemas comuns de periferias urbanas, mas, também, problemas específicos na atuação dos municípios contra a covid-19 e um bairro de divisa: enquanto Poá caem os casos de covid, atravessando a rua, no mesmo bairro, se descobrem novos casos em Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e São Paulo.

O Auxílio Emergencial é um benefício que cumpre um papel de complemento e assistência direta de renda, criado no Brasil pela Lei de nº 13.982/2020, que deveria ter um papel de impedir a circulação das pessoas que sempre tiveram pouca ou nenhuma renda, reduzindo o impacto da busca por emprego. 

São 600 reais que se traduzem fundamentalmente em questões básicas, mas que não tem o poder de impedir a busca por melhores condições de qualidade de vida. Nem mesmo as pessoas como a Dona Marta, pela maneira como vive, puderam ter acesso ao Auxílio Emergencial. Enquanto não houver vacina ou medicação para reduzir todos os impactos causados pelas desigualdades na pandemia, as contaminações e principalmente as mortes, como sempre, estarão presentes na periferia.

Crédito da imagem em destaque: Arquivo próprio de imagens/ À direita Neide de Moreas André dos Santos (62) com sua filha, atendidas pelo projeto de Agentes Populares de Saúde e Cestas Básicas da UNEafro Brasil, no núcleo XI de Agosto (08/2020).

Wellington Lopes é Cientista Social, atua como educador popular e coordena o Núcleo XI de Agosto de Cultura e Educação, da UNEafro Brasil.

Coronavírus e racismo: combinação de risco

Coronavírus e racismo: combinação de risco

O filósofo jamaicano Charles Wade Mills afirma que toda pessoa branca, queira ela ou não, é beneficiária do racismo. Independentemente da sua vontade.

Como se pode constatar a afirmação no sistema de saúde, com o coronavírus?

O projeto Agentes Populares de Saúde da Uneafro, que apoia comunidades vulneráveis e periféricas no combate à pandemia, levanta dados que exemplificam bem essa questão: pessoas negras estão sendo menos testadas para covid-19 que pessoas brancas (dentro de uma mesma classe social): enquanto mais de 80% das pessoas brancas monitoradas pelo projeto por suspeita de coronavírus foram testadas ao passar em um serviço de saúde (confirmando ou descartando a infecção), apenas 37,5% das pessoas negras foram testadas, ou seja, 62,5% das pessoas negras não tiveram acesso a nenhum teste (continuando com o status de “caso suspeito”).

O projeto faz monitoramento remoto de casos suspeitos e, com respaldo de uma equipe médica e protocolos clínicos, as pessoas são encaminhadas a hospitais para serem internadas na vigência de sinais de gravidade. Nessa rotina, aponta outro dado alarmante: as pessoas negras têm mais dificuldade de acesso ao sistema de saúde e são as que mais estão expostas a descaso e negligência. No caso das pessoas monitoradas pelo projeto, as únicas que precisaram de internação por coronavírus e não tiveram problemas com seus hospitais de referência foram pessoas brancas. Todas as pessoas negras encaminhadas para internação, portanto, encontraram dificuldades. Felizmente, o projeto conseguiu dar seguimento para todos os casos, garantindo a internação em outros hospitais do SUS por meio da articulação da equipe médica voluntária e, em um caso bastante emblemático, a pessoa só conseguiu ser internada de acordo com a gravidade do caso (em uma unidade semi-intensiva) após o projeto encaminhá-la a um hospital privado, arcando com os custos da internação.

Esses dados corroboram informações já conhecidas: pessoas negras morrem muito mais por coronavírus do que pessoas brancas.

Tudo isso assusta, mas é importante dizer que dados de racismo no sistema de saúde de antes da pandemia já eram preocupantes. Tratando-se da assistência ao pré-natal e ao parto, por exemplo, as mulheres negras sofrem mais negligência e violência obstétrica. São elas que esperam por mais tempo para serem atendidas, têm menor tempo de consulta, são mais submetidas a procedimentos dolorosos sem anestesia. E vale ressaltar que 60% das mortes maternas por causas evitáveis ocorrem entre as mulheres negras. Essas violências têm se agravado com força nesse período.

Um estudo recente sobre o impacto desproporcional da covid-19 entre gestantes e puérperas no Brasil mostrou que a morte materna de mulheres negras pelo vírus é quase duas vezes que de mulheres brancas.

Mas absolutamente nada disso é culpa do vírus. O vírus realmente não tem preferência por nenhuma raça-cor (até porque a divisão racial não é biológica, e sim política e social). Isso também não acontece só quando os profissionais de saúde agem intencionalmente de forma racista (com insultos, agressões ou violências diretas contra as pessoas negras). O racismo estrutural e institucional, inclusive no sistema de saúde, beneficia as pessoas brancas e negligencia as pessoas negras.

“Bom, então se é um problema estrutural e institucional, nada pode ser feito.”

Isso também não é verdade. Ainda que, em muitos casos, seja um problema estrutural e institucional (quando também não acontece a intenção individual da violência), o racismo só pode ser perpetuado pela ação dos indivíduos. Então, a primeira coisa que precisa acontecer é que os profissionais de saúde criem consciência dessa situação.

Em busca dessa conscientização, há mais de dez anos já existe a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, uma estratégia criada em 2009 pelo Ministério de Saúde em diálogo com o movimento negro para a superação do racismo e a garantia de promoção da igualdade racial, desenvolvimento e fortalecimento da democracia. Porém, e ainda como parte dessa estrutura racista, é ainda uma política muito pouco implementada e disseminada. Muitos profissionais sequer conhecem essa política e outros tantos julgam que não é importante conhecê-la, apoiando-se no mito da democracia racial: “para quê essa política se somos todos iguais e devemos tratar a todas e todos da mesma forma?”. Pois é: exatamente porque não é isso o que acontece na prática.

A psicóloga e pesquisadora Maiara Benedito aponta em sua dissertação que, por se tratar de áreas compostas majoritariamente por profissionais brancos, as discussões e pesquisas sobre questões raciais são raras em áreas da saúde – como a medicina e a psicologia. Afirma ainda que a dificuldade em reconhecer privilégios dentro de uma estrutura social racista ou a crença de que o racismo é um problema exclusivo da população negra, impossibilita que esses indivíduos brancos reflitam sobre o papel que ocupam na sociedade e como contribuem para as desigualdades raciais. Charles W Mills também fala sobre isso, nomeando essa postura que resiste em encarar os fatos de “ignorância branca”: “imagine uma ignorância que resiste. […] uma ignorância que é ativa, dinâmica, que se recusa a desaparecer tranquilamente – de modo algum confinada ao iletrado, ao sem educação, mas propagada nos níveis mais altos da terra, de fato se apresentando despudoradamente como conhecimento.”

Apesar de todas as dificuldades e resistências, o mesmo filósofo jamaicano também afirma que nem toda pessoa branca é, necessariamente, signatária do racismo e do contrato racial que ele impõe. Se nem toda pessoa branca é signatária, está aberta a possibilidade de alianças na construção de um outro tipo de sociedade, em que um outro tipo de contrato seja possível e onde todas as pessoas podem desfrutar igualitariamente das oportunidades gestadas.

Então, cara branquitude da qual eu que vos escrevo também faço parte e reconheço que sou beneficiária: é fundamental sair dessa negação com urgência. Precisamos nos responsabilizar pelas mudanças estruturais, pois somos nós que perpetuamos o racismo. Um racismo que, como bem pauta Maiara Benedito, é sinônimo expresso de sofrimento e atravessa absolutamente todos os aspectos da vida das pessoas negras, direta ou indiretamente.

É com o amparo da nossa negação que ocorre o genocídio do povo preto e periférico todos os dias, inclusive (e nesse momento de pandemia principalmente) pelas nossas ações “distraídas e despretensiosas” (eufemismo para “racistas”) dentro do sistema de saúde. É preciso avançar com urgência nos estágios do racismo apontados pela escritora, psicóloga e artista portuguesa Grada Kilomba: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação.

Precisamos reparar todas essas atrocidades cometidas. No caso dos profissionais de saúde, então, trata-se de uma questão de emergência absoluta. É necessário ter consciência das práticas cotidianas e constantemente se questionar, por exemplo: será que estou indicando menos testes para casos suspeitos de coronavírus na população negra? Será que estou dando a mesma atenção para uma pessoa negra que daria a uma pessoa branca? Como diz a escritora, jornalista e ativista brasileira Bianca Santana no livro Quando Me Descobri Negra: “Não precisa contar pra ninguém. Só tente não repetir”.

Bruna Silveira, médica de família e comunidade, terapeuta de medicina tradicional chinesa e de homeopatia. É coordenadora de saúde do projeto Agentes Populares de Saúde da Uneafro Brasil, supervisora do Programa Mais Médicos no Vale do Ribeira – SP, trabalhou na assistência e ensino da estratégia de Saúde da Família em diferentes regiões da grande São Paulo. Produz o podcast Universo Pitaia – Saúde e Feminino.

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Como parte do projeto Agentes Populares de Saúde, a Uneafro e o Instituto de Referência Negra Peregum lançam este blog com o objetivo de reportar semanalmente histórias, análises e dados sobre a travessia da pandemia da COVID-19 nos territórios de atuação dessa iniciativa.

Semanalmente o blog é atualizado por textos reportagens e por textos de opinião de profissionais atuantes do projeto, nossa missão é levar mais informação e estabelecer um diálogo com a população para que possamos construir novas narrativas de forma democrática.

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