Os cursinhos populares são movimentos políticos e culturais que nascem do acúmulo de saberes provenientes da luta. Autogestores de seus territórios, comunidades e tradições, resgatam, sistematizam e preservam conhecimentos e memórias para a construção de políticas sociais, de dentro para dentro do seu lugar coletivo. São movimentos que educam toda a sociedade e o fazer política.
O contínuo da ancestralidade só se faz possível pelas múltiplas existências que juntas dão sequência a história do seu povo. Assim nascem os corpos coletivos como a Uneafro Brasil, que desmobiliza resquícios coloniais ainda presentes no imaginário social, ou seja, a forma racista e sexista com que somos programados a vermos o mundo e a convivermos com outras pessoas, para então, resgatar um tipo específico de conhecimento, o conhecimento nascido da luta, aquele que coloca a vida como princípio máximo da coletividade. Fazendo referência a Nilma Lino Gomes em O Movimento Negro educador: Saberes construídos nas lutas por emancipação (2018), “a intervenção social, cultural e política dos negros e negras ao longo da história […] não se trata de ações intuitivas, mas de criação, recriação, produção e potência”.
Através da construção de pedagogias do futuro, – práticas que garante espaços para se criar perspectivas e horizontes – a Uneafro Brasil desenvolveu o projeto Agentes Populares de Saúde, uma rede de autogestão da comunidade e da coletividade, fatores que guiam a vida das famílias e comunidades pretas e periféricas no Brasil. Pensando que o SUS é uma conquista coletiva e de necessidade coletiva, sendo que aproximadamente 80% da população brasileira que depende do Sistema Único de Saúde (SUS) se autodeclara negra, mas a verba pública disponibilizada à saúde não condiz com as necessidades de uma crise sanitária e nem dialoga com as quebradas, não há outro caminho senão sermos gestores da nossa realidade.
Complexa em estratégias de sobrevivência e incidência política, a Uneafro Brasil extraí das tensões raciais, territoriais e econômicas caminhos para a manutenção do território vivo e de suas comunidades pulsantes. Somos seres articulares de uma nova realidade social e de uma nova experiência do que é público: ruas que caibam nossos corpos, suas tradições e moradas.
Identificamos as nossas urgências, formulamos agendas de incidência política e alternativas de implementação das nossas ações, tudo pensado coletivamente e organicamente às construções do território. Estando nas ruas, avaliamos como cada ação age de maneira diferente nos olhos de cada pessoa. As políticas nunca se extinguem, só se somam. Dentro dos nossos território, tudo o que formulamos não é sobre a minoria, mas sobre todos. Esses movimentos insurgentes, que vasculham o passado na constante construção de pedagogias do futuro são o que chamamos de movimentos sociais, dos quais partem construções políticas que mudam os rumos da história. O movimento negro e seus cursinhos populares, espalhados pelas quebradas do Brasil, encontram na educação um ponto de partida, de reconhecimento e de comunidade. São esses saberes desassociadas da lógica Ocidental que proporcionam um processo pedagógico de reeducação da população brasileira.
Pensar futuro é tarefa coletiva. Da tríade educação, participação e território, emergem pedagogias e formulações integradas e complexas, como requer a organização das periferias. Reflexo disso são os materiais dos Agentes Populares de Saúde, que dispõe de práticas da medicina ancestral para o corpo e a saúde mental, de vídeos explicativos sobre o funcionamento e implicações do COVID-19 no nosso corpo e na nossa vida e o cuidado com os líderes comunitários – que pouco se fala.
Indo contra as imposições do Estado sob o território, que fragmenta indivíduo, bairro, contexto e história, esse projeto de saúde tece uma outra maneira de articulação. Sendo forjado na periferia, colhe uma multiplicidade de fazeres, de saberes e vivências para então pôr em prática o cuidado. Assim, temos pessoas dos próprios espaços olhando e falando com os seus. Sempre houve uma rede entre vizinhos, familiares e amigos, que hoje realizam um papel importante na luta contra o COVID-19. É o que chamamos de comunidade e sua linguagem, ou de política dos que vão às ruas.
É na rua que os movimentos sociais se materializam. Nunca houveram dúvidas. Hoje, numa crise sanitária, esse espaço constrói novos lugares e se desvincula de outros. Há quem pode se recolher, há quem recorra para manifestar o direito à vida, há quem passa para ir ao trabalho, mas de toda forma é na rua e por ela que damos sequência às pedagogias do futuro. Parafraseando Luiz Antonio Simas, em “Encantamento: sobre política de vida (2020), é “primar por uma política e educação de base comunitária entre todos os seres e ancestrais”.
A educação é necessidade básica na luta pela vida. Mas não só. Esta não existe quando desvinculada das outras necessidades básicas para qualquer pessoa: alimentação, saúde, rede de apoio e espaço físico para desenvolvimento de suas habilidades. É através desse entendimento que juntos, Os Agentes Populares de Saúde geram políticas para resguardar aquilo que o Estado brasileiro não faz pela população preta e periféricas: nossas comunidades, guardiãs dos conhecimentos do futuro.
Foto/₢apa: Caio Chagas
Transitando pelas narrativas poéticas e acadêmicas, Jéssica Ferreira, 23 anos, é escritora, pesquisadora, estudante de Políticas Públicas na Universidade Federal do ABC e idealizadora do Sarau A Perfeita Queda dos Búzios. Colabora com a comunicação da Uneafro Brasil e da Coalizão Negra por Direitos.