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Pensar a vida é uma tarefa individual e coletiva, nos dispomos a esse exercício porque há uma necessidade de receber e buscar propósito nas ações humanas. Essa busca pode se basear em diversos fatores, mas em resumo isso acontece por um motivo simples: buscar propósito sempre tem a ver com uma vontade de viver com qualidade de vida.

Então, posso dizer que viver com qualidade de vida significa principalmente realizar pequenas e grandes realizações de propósitos diários individuais e coletivos. E em todas as comunidades humanas o trabalho é fundamental como força de transformação do ambiente em que se vive e de circulação humana.

Em meio à pandemia da COVID-19, que começou no final de 2019 na cidade Wuhan, na China, e se espalhou pelo mundo, trouxe justamente os questionamentos sobre como as desigualdades socioeconômicas iriam produzir um cenário de catástrofe na saúde da população de diversos países. Isso significaria paralisação de setores importantes da economia de cada país. Em outras palavras, a força mais fundamental de circulação humana na realização da vida em sociedade para cumprir propósitos diários individuais e coletivos entraria em colapso: o trabalho.

Diante do cenário devastador com mais de 100 mil mortes registradas por COVID-19 no Brasil, mais de 800 mil no mundo, há um preço a se pagar ao se viver na pobreza. Essa soma de crise de saúde e econômica, coloca em questão os valores morais que uma sociedade extremamente hierarquizada e violenta está disposta a pagar ao manter decisões econômicas que privilegiam o propósito de qualidade de vida de pequenos grupos e indivíduos.

O Brasil vive uma longa novela de crise política nas instituições que representam a sociedade civil através do Estado “democrático de direito”. Essa crise tem raízes na estrutura de distribuição das desigualdades sociais.Ora, digo isso, porque segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD), de 2019, apontava que o aumento do desemprego cresceu principalmente entre pretos (16%) e pardos (14,5%) e que brancos (10,2%) ficaram abaixo da média nacional de 12%.

Há também como reflexo a crescente taxa de informalidade como resposta à sobrevivência em todo país, como aponta a reportagem da Folha de S. Paulo a Informalidade supera 50% em 11 estados do país, segundo o IBGE . Enquanto o ricos ficaram mais ricos.

Pessoas negras jovens e idosas apostam em todo tipo de trabalho para poder comer, o que se torna consequentemente seu único propósito diário. Um paradoxo violento, em meio à pandemia, porque não há possibilidade de viver com qualidade em subempregos e sem garantias de direitos trabalhistas.

Arquivo próprio de imagens/ Entrega de cartilhas sobre prevenção ao contágio de COVID-19 em feira de rua, agente popular de saúde conversa com idosa sem máscara, Cidade Kemel-SP (07/2020)

A maioria da pessoas atendidas pelo projeto de saúde estão desempregadas e fazem “bicos” para compor algum tipo de renda. Marta Urania (65), uma das mulheres idosas atendidas pelo projeto, mora entre uma igreja e o córrego onde passa esgoto e onde é descartado muito lixo. A casa de “Dona Marta”, como é conhecida, é de palafita e chão de terra batido, como às outras casa ao lado da dela, não tem água encanada nem acesso a eletricidade.

Ela está desempregada e recolhe material reciclável para vender quando pode, mesmo morando sozinha e vivendo com pouco, sempre cozinha e divide os alimentos e máscaras que recebeu da cesta básica da UNEafro Brasil com os outros moradores, e pela primeira vez em dois anos morando no bairro Cidade Kemel têm sua saúde monitorada. Sem conta no banco e celular ou outro aparelho eletrônico, não solicitou às primeiras parcelas do Auxílio Emergencial.

Ela apresentou sintomas de covid no inicio do mês de julho (tosse, febre e falta de ar), alguns dias antes de pegar pela primeira uma cesta básica e acessar o projeto de Agentes Populares de saúde. Apesar de melhorar, ela não realizou nenhum teste, sem saber se teve covid, dificilmente poderia evitar a contaminação. A Cidade Kemel, bairro de periferia que está na divisa entre Poá, São Paulo, Ferraz de Vasconcelos e Itaquaquecetuba, concentra problemas comuns de periferias urbanas, mas, também, problemas específicos na atuação dos municípios contra a covid-19 e um bairro de divisa: enquanto Poá caem os casos de covid, atravessando a rua, no mesmo bairro, se descobrem novos casos em Itaquaquecetuba, Ferraz de Vasconcelos e São Paulo.

O Auxílio Emergencial é um benefício que cumpre um papel de complemento e assistência direta de renda, criado no Brasil pela Lei de nº 13.982/2020, que deveria ter um papel de impedir a circulação das pessoas que sempre tiveram pouca ou nenhuma renda, reduzindo o impacto da busca por emprego. 

São 600 reais que se traduzem fundamentalmente em questões básicas, mas que não tem o poder de impedir a busca por melhores condições de qualidade de vida. Nem mesmo as pessoas como a Dona Marta, pela maneira como vive, puderam ter acesso ao Auxílio Emergencial. Enquanto não houver vacina ou medicação para reduzir todos os impactos causados pelas desigualdades na pandemia, as contaminações e principalmente as mortes, como sempre, estarão presentes na periferia.

Crédito da imagem em destaque: Arquivo próprio de imagens/ À direita Neide de Moreas André dos Santos (62) com sua filha, atendidas pelo projeto de Agentes Populares de Saúde e Cestas Básicas da UNEafro Brasil, no núcleo XI de Agosto (08/2020).

Wellington Lopes é Cientista Social, atua como educador popular e coordena o Núcleo XI de Agosto de Cultura e Educação, da UNEafro Brasil.

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